Entramos na era da preguiça intelectual?

Por: Michele Muller

|

Artigos de Educação

25 de set. 2025
Entramos na era da preguiça intelectual?

Por Michele Müller

George Platen estava ansioso pela chegada do Dia da Profissão, quando saberia se sua ambição profissional se realizaria. Queria ser programador. Mas no mundo futurístico em que vivia ninguém tinha o privilégio de escolher a ocupação. Com o trabalho intelectual dominado pelas máquinas, o governo precisou criar um sistema otimizado de distribuição de papéis, combinando a demanda do mercado com a propensão dos jovens para certas ocupações que ainda cabiam aos humanos. Neste dia tão esperado, promovido anualmente, era feita uma espécie de download de informações necessárias para os jovens exercitarem seu trabalho.

Para aumentar as suas chances de poder seguir a carreira que desejava, Platen se preparou lendo todos os livros que encontrou sobre o assunto – uma atitude tão incomum para a época que era motivo de deboche. O dia fatídico foi uma decepção: ao contrário dos seus amigos, que ganharam profissão e, de forma quase instantânea, todos os conhecimentos necessários para exercê-las, ele foi levado a uma escola diferente. Lá o conhecimento era ganho de forma lenta, ao longo dos anos e com base em erros e acertos. Os poucos enviados àquele lugar faziam o que ninguém mais precisava ou queria fazer: ler livros. George não fazia ideia de por que havia sido enviado para lá. Achou que não haviam acreditado em sua capacidade. Finalmente, foi-lhe revelada a verdadeira função daquela instituição tão estranha, tão à moda antiga: lá se formavam os líderes da humanidade, os poucos que tinham competência para tomar decisões complexas e pensar de forma criativa.

A Profissão é um dos inúmeros contos em que a imaginação de Isaac Asimov visitou o futuro e não trouxe só boas notícias. O que é preocupante, pois as centenas de histórias que lançou há quase 70 anos acabaram se revelando assustadoramente proféticas: ele previu que todos teriam computadores e que eles seriam ferramentas essenciais na educação; previu que as máquinas ficariam cada vez menores e mais poderosas, que teríamos uma rede mundial de informações, que criaríamos dependência tecnológica e que esse hábito iria interferir profundamente em nossa forma de sentir, agir, pensar e interagir. De forma surpreendente, previu que relacionamentos seriam em grande parte transferidos ao mundo virtual, que informações poderiam ser armazenadas não em dispositivos físicos, mas no que hoje chamamos de “nuvem”, e que as máquinas não apenas assumiriam trabalhos intelectuais, como ficariam mais inteligentes que os humanos. Previu ainda a criação do que conhecemos atualmente como big data e sua influência nas tendências políticas e sociais.

Dentre todos os cenários vislumbrados pelo escritor, o declínio nas habilidades humanas de raciocínio, criatividade e interação social, em paralelo à ascensão da inteligência artificial, é um dos mais alarmantes. Esse processo de transferência de inteligência passa, naturalmente, pelo completo desinteresse das pessoas pela leitura e pelos livros. E tudo indica que Asimov acertou também nessa triste descrição dos rumos que a humanidade tomaria. O que ele não previu é que tudo isso aconteceria em um futuro tão próximo. 

Os índices de leitura vêm caindo de forma drástica nos últimos anos em todos os cantos do mundo. A queda é acompanhada, não surpreendentemente, pela perda da capacidade de sustentar a atenção por tempo prolongado e de aprender coisas novas. Os resultados do último PISA (Programme for International Student Assessment), de 2022, mostraram o declínio mais drástico da história do teste em leitura, matemática e ciências na maior parte dos países participantes, inclusive no Brasil, cujos resultados sempre foram um fiasco. Na maior parte dos países avaliados pelo programa, mesmo naqueles que tiveram aumento significativo de investimento com educação, o desempenho na leitura de jovens estudantes caiu consideravelmente nos últimos anos. 

Para completar a lista de retrocessos intelectuais, temos inúmeras evidências de que, ao contrário da história que revistas científicas contavam com certo orgulho um tempo atrás, não estamos ficando mais inteligentes. O tal do Efeito Flynn, que descrevia um aumento gradual no quociente de inteligência da população, atingiu seu cume há muitos anos (em alguns estudos, na década de 70, outros, em datas mais recentes) e está em declínio constante várias populações, em especial em países desenvolvidos. As quedas, confirmadas por um volume extenso e consistente de análises, são observadas sobretudo em raciocínio verbal – que inclui vocabulário e lógica –, analogias, memória de curto prazo e resoluções de problemas. Já as pontuações no raciocínio espacial encontram-se em ascensão, possivelmente resultado com videogames e outras tecnologias digitais.

É fato que o teste de QI não mede todos os aspectos da cognição, mas dentro do que se é possível avaliar de forma organizada e mensurável, é uma ferramenta imensamente estudada, discutida por especialistas há muitas décadas e bastante reveladora. Por mais falhas que possa apresentar o teste, seus resultados estão comprovadamente associados a fatores como sucesso acadêmico e profissional, saúde e longevidade. A correlação de QI com a qualidade de vida pode ser explicada, em linhas gerais, pelo sucesso do teste em indicar habilidades de tomada de decisão, flexibilidade cognitiva e processamento de informações. Habilidades que, ao que tudo indica, estamos perdendo, tal como Asimov profetizou. 

As teorias que procuram explicar a inversão do Efeito Flynn são muitas – da degradação de sistemas educacionais ao empobrecimento da dieta. O mais provável é que seja uma soma de fatores ambientais. Naturalmente, a busca pelas causas vai passar pelo excesso de informações rasas com que hoje preenchemos nossas mentes. E se isso não explica o início da queda na curva da inteligência, pois o fenômeno precede as mídias sociais, certamente ajuda a empurrar os índices para baixo. Afinal, essa forma de consumir informações – viciante, rápida, superficial e produzida sem critérios – coincide com o crescente desinteresse da população pela leitura, uma vez que, agora sim, é sua mais evidente causa. 

A correlação é óbvia: redes sociais são inimigas da atenção sustentada. Elas oferecem de forma gratuita e ilimitada o que o cérebro precisa para escapar do esforço que a concentração exige: gratificação imediata, mudança constante de estímulos, novidades, fofocas. Com tantas informações superficiais e entregues da forma mais “digerível” possível disputando nosso tempo e atenção, a leitura de livros passou a exigir uma autodisciplina que cada vez menos pessoas são capazes de entregar.

Nunca se leu tão pouco. A maior pesquisa do gênero na Inglaterra (National Literacy Trust) revelou os mais baixos índices de leitura da série histórica, com apenas um quinto dos jovens afirmando ler por prazer, um índice 50% inferior ao de 20 anos atrás. Nos anos 80 para cá, o número de jovens que leem por opção caiu pela metade. Outra abrangente análise da American Time Use Survey mostrou um declínio de 60% na leitura não obrigatória entre adolescentes nos últimos 40 anos, o que significa que atualmente apenas 14% dos jovens americanos têm o hábito da leitura. 

O Brasil, naturalmente, segue o mesmo caminho. A pesquisa Retratos da Leitura mostrou que entre 2015 e 2024, mais da metade dos entrevistados não havia lido sequer um livro inteiro nos meses anteriores à pesquisa, o mais baixo patamar da série. Milhões de adultos abandonaram o hábito da leitura neste tempo. Atualmente, a média nacional de livros lidos por brasileiros está abaixo de 4 por ano, contando com os lidos apenas em parte e os religiosos, que respondem por mais da metade do que nosso povo lê. Ou seja, a literatura não faz mais parte do dia a dia de quase ninguém no país. Com esses resultados, não é de se espantar que cerca de metade dos jovens brasileiros são analfabetos funcionais, ou seja, não conseguem compreender aquilo o que leem, segundo dados do mais recente levantamento sobre alfabetização do Instituto Paulo Freire. 

A perda da capacidade de nos dedicarmos a uma tarefa intelectual pelo tempo necessário para que haja compreensão profunda é muito mais que uma mudança nos hábitos da sociedade ou uma adaptação a um ritmo acelerado de consumir informações. A fast-information deteriora nossas capacidades cognitivas mais nobres e humanas. A informação que ensina, transforma ou faz alguma diferença em nossas vidas é aquela produzida pelas mentes com a mais ilustre capacidade de imaginar e de narrar; e é digerida lentamente, processada, associada a outras e então, quando necessária, utilizada. Livros ensinam de verdade – nos equipam com diferentes formas de imaginar, interpretar o mundo e compreender mais profundamente o ser humano como indivíduo e sociedade. Vídeos curtos com informações mastigadas são esquecidos quase que na mesma velocidade com que são consumidos, ao mesmo tempo em que deixam rastros de ansiedade que desestabilizam mentalmente. 

A perda do hábito da leitura é ao mesmo tempo causa e consequência da rápida e indiscutível deterioração da capacidade de sustentar a atenção. A relação de consequência é óbvia: sem prestar atenção no que se está lendo, a leitura não tem sentido, torna-se um sacrilégio e não serve para nada. Naturalmente, o hábito é abandonado. Já a reação de causa é menos evidente, mas de grande importância: o que queremos fortalecer precisamos exercitar. E um dos exercícios de concentração mais completos e enriquecedores é a leitura de livros. Sem a prática diária da leitura, tornamos a atenção ainda mais vulnerável. Enquanto sociedade, ao perdermos esse hábito nos colocamos mais distantes de uma reversão do rumo degradante que está tomando a cognição humana.

E em meio a este cenário negativo para nossa saúde mental e desenvolvimento intelectual, entramos na era da inteligência artificial, outro tema muito explorado na obra de Asimov, tanto sob o ângulo de suas maravilhas quanto de suas consequências indesejadas. Ao que tudo indica, as máquinas vão substituir grande parte do trabalho intelectual humano. Em determinadas áreas isso já é realidade. São excelentes funcionárias – ágeis, baratas, não cansam, aprendem com os erros, se aperfeiçoam. Chegaram fazendo o que até então só era possível em ficção científica, deixando-nos com a impressão de que pegamos o trem andando e não sabemos para onde estamos indo. Tememos a inteligência artificial na mesma medida em que nos tornamos dependentes dela. Boa ou ruim, ela não vai mais embora. Nos resta encontrar soluções para evitar que suas capacidades não engulam as nossas.

Uma das mudanças que mais rapidamente absorvemos foi a utilização dos chatbots para a criação de textos. Professores de todos os níveis, mídia, editoras, todos estão à deriva tentando encontrar um rumo para preservar o exercício e o valor da escrita humana, questionando-se sobre o que a diferencia, como não perdê-la e como evitar que alunos e profissionais que trabalham com informações não fiquem cada vez mais preguiçosos e incapazes.

Nos colocamos num círculo vicioso do qual vai ficar cada vez mais difícil sair. A solução, como a esta altura você deve ter concluído, está no antídoto mais antigo e mais confiável contra a ignorância coletiva: a leitura de livros. Justamente o que estamos deixando de fazer. Se voltarmos a nos dedicar à lenta tarefa de mergulhar pacientemente e com curiosidade em mundos criados e recriados, podemos olhar para o nosso com olhar mais crítico.

A literatura nos fornece o que precisamos para raciocinar melhor, escrever e falar com eloquência e diferenciar com facilidade textos feitos por humanos dos criados por máquinas, sabendo valorizar e utilizar, para diferentes fins, o que cada um oferece. Nos fornece meios de perceber injustiças e de argumentar contra elas. Nos permite enxergar outras realidades sob diversas perspectivas, nos leva apreciar e dignificar o que nos faz humanos – que é o que mais precisamos neste momento em que as máquinas parecem ao mesmo tempo tão fantásticas e ameaçadoras.

Ao resgatarmos a autodisciplina e a dedicação necessária para desvendar histórias e fatos contados de infinitas formas nos livros – o que só será possível quando repensarmos a forma como consumimos informações e gastamos nosso tempo – teremos as competências de que precisamos para usar as ferramentas inteligentes a favor do nosso intelecto e não contra ele. 



 

Artigos com evidências das informações citadas no texto: 

Sobre a reversão do efeito Flynn:

Bratsberg, B., & Rogeberg, O. (2018). Flynn effect and its reversal are both environmentally caused. Proceedings of the National Academy of Sciences, 115(26), 6670-6674

https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.1718793115

Dutton, E., & Lynn, R. (2015). A negative Flynn effect in France, 1999 to 2008–9. Intelligence, 51, 61-64 

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S016028961500057X

Dworak, E. M., et al. (2023). Are IQ scores still rising? A US sample between 2006 and 2018. Intelligence. 

https://news.northwestern.edu/stories/2023/03/americans-iq-scores-are-lower-in-some-areas-higher-in-on

Gonthier, C., & Ficklin, E. (2023). Are cognitive abilities declining? A global review of the evidence for a reverse Flynn effect. Humanities and Social Sciences Communications, 10(1), 1-13

Lynn, R. (2013). The decline of the world's IQ. Intelligence, 41(2), 112-117

https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S016028961200115X

Makel, M. C., Wai, J., Kell, H. J., Lubinski, D., & Benbow, C. P. (2023). The Flynn effect and reverse Flynn effect in a US sample: Examining changes in cognitive abilities from 2006 to 2018. Intelligence, 97, 101732. https://doi.org/10.1016/j.intell.2022.101732

Pesta, B. J., Poznanski, P., & Macaluso, S. (2023). A negative Flynn effect in the USA: Evidence from 50 years of NAT scores. Intelligence, 98, 101730

Zysberg, L. (2020). The reversal of the Flynn effect: Evidence from PISA data. Current Psychology, 39(1), 153-162

https://link.springer.com/article/10.1007/s12144-018-0010-0

Sobre o impacto da inteligência artificial:

Ahmad, S.F., Han, H., Alam, M.M. et al. Impact of artificial intelligence on human loss in decision making, laziness and safety in education. Humanit Soc Sci Commun 10, 311 (2023). 

https://www.nature.com/articles/s41599-023-01787-8

Sobre perdas no hábito de leitura:

 Instituto Pró-Livro - Pesquisas Retratos da Leitura no Brasil:

https://www.prolivro.org.br/pesquisas-retratos-da-leitura/as-pesquisas-2

New research reveals that parents are losing the love of reading aloud" HarperCollins UK, April 30, 2025 https://corporate.harpercollins.co.uk/press-releases/new-research-reveals-that-parents-are-losing-the-love-of-reading-aloud/

NLT survey shows young people's reading enjoyment at lowest level in 20 years" The Bookseller, June 11, 2025 https://www.thebookseller.com/news/nlt-survey-shows-young-peoples-reading-enjoyment-at-lowest-level-in-20-years

ReadingZone. (2025). National Literacy Trust’s 2025 Reading Report Marks 20-Year Low in Reading for Pleasure.

https://www.readingzone.com/news/national-literacy-trust-s-2025-reading-report-marks-20-year-low-in-reading-for-pleasure/?hl=pt-BR

Reading for pleasure plummets to an all time low. What's the picture in the SEND world?" (SEND Network, January 13, 2025 - future-dated): https://send-network.co.uk/discussions/reading-for-pleasure-plummets-to-an-all-time-low-what-s-the-picture-in-the-send-world

Scholastic. (Various Editions, e.g., 8th Edition, 2023). Kids & Family Reading Report.

https://www.scholastic.com/content/corp-home/kids-and-family-reading-report/

The amount of people reading for pleasure is declining, WEF, April 28, 2022 - based on BLS data up to 2019

https://www.weforum.org/stories/2022/04/reading-pleasure-america-covid19/

The decline in children Reading for Pleasure", The Open University - cites Clark and Teravainen-Goff, 2020

https://www.open.edu/openlearn/mod/oucontent/view.php?id=113688&section=3

The decline in reading for pleasure in the US: analyses of 20 years of the American Time Use Survey.  https://www.researchgate.net/publication/390820492_The_decline_in_reading_for_pleasure_in_the_US_analyses_of_20_years_of_the_American_Time_Use_Survey

Sobre o PISA

 PISA (Programme for International Student Assessment), Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD).  https://www.oecd.org/pisa/
Zysberg, L. (2020). The reversal of the Flynn effect: Evidence from PISA data. Current Psychology, 39(1), 153-162.

https://link.springer.com/article/10.1007/s12144-018-0010-0